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PLURAL: os textos de Atílio Alencar e Fabiano Dallmeyer

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O teatro do absurdo

Atílio Alencar
Produtor cultural


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Onde não houver inimigo, urge criar um. Esta frase, que serviu de título ao texto dramatúrgico de João Bethencourt, levado à cena pelo Teatro Oficina em 1970 (e posteriormente encenado pelo grupo santa-mariense TUI, sob direção de Clenio Faccin, em 1972), expressa com fina ironia a lógica da caça às bruxas que alguns governos promovem, incitando o clima de paranoia social entre as instituições e a sociedade civil. 

Ao longo das distintas histórias nacionais, o recurso de fabricar o inimigo ideal, forjado sob medida para compilar os receios difusos da população num só estereótipo, serviu para mobilizar campanhas de ódio e perseguição a grupos dissidentes, minorias étnicas e adversários políticos.

No pampa argentino do século XIX, os bandos de mercenários a serviço dos caudilhos escalpelavam os unitaristas para dar bom exemplo aos pueblos; a Alemanha nazista, antes de assassinar milhões de judeus nos campos de concentração, exortou os cidadãos comuns a humilhar e isolar todo indivíduo de origem judia; Stalin amputou membros do próprio Komintern para expurgar os "inimigos do povo", em julgamentos de teor espetacular; Donald Trump prometeu erguer uma muralha na fronteira estadunidense com o México, e comete sucessivas ameças xenófobas contra imigrantes das mais diversas nacionalidades. Árabes, negros e povos originários de todas as Américas conheceram o papel de bode expiatório.

Cada rei, quando flagrado em sua nudez, manda cortar cabeças ou elege suas bruxas para sacrificar às fogueiras da aprovação popular.

Não é raro, como acontece agora no Brasil, que a encarnação do mal recaia sobre os ombros dos "comunistas", sejam eles reais ou imaginários. Bolsonaro elevou a obsessão da "guerra cultural", inspirada na doutrina desmiolada do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, ao patamar de política de governo - a única, aliás, de que se tem notícia em sua gestão.

O rol de comunistas a trair o brasil

Primeiro, o "comunismo" do PT (partido que governou o país por mais de treze anos sem estatizar propriedades privadas nem reduzir o lucro de bancos e grandes corporações, que se saiba) foi o alvo até compreensível da campanha eleitoral. Afinal, na campanha não se pratica o fair play. Mas, já empossado, o tom não mudou: negou-se a cumprimentar o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernandez, por ser um suposto representante do "comunismo" (seria realmente exigir demais da modesta cognição de Bolsonaro que compreendesse o fenômeno do peronismo). Depois, passou às teorias conspiratórias contra ex-aliados. À medida que a frustração com o governo cresce, aumenta também o rol de comunistas a trair o Brasil. Hoje, contrariando toda a bajulação recente, até o heroico ex-ministro Sergio Moro é atacado pelas claques bolsonaristas aos gritos de - adivinhem o quê? Comunista, é claro. Ao seu lado, os rapazotes do MBL, Joice Hasselmann e Luiz Henrique Mandetta também ajudam a agitar a infame bandeira vermelha sobre nossos tristes trópicos.

Coronavírus ideológico

O próprio coronavírus, um organismo intracelular e dificilmente enquadrável em algum espectro ideológico, é acusado pelo crime de subversão comunista. É que, por ter sido identificado primeiro na China, o vírus decerto tem inclinações maoístas.

E assim vai se confirmando a impressão de que, sob o espantalho onipresente do comunismo, esconde-se um governo inerte, absolutamente incapaz e cuja única esperança de salvação está no apelo queixoso à caridade das Forças Armadas. 

Selecionando violências

Fabiano Dallmeyer
Fotógrafo


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Essa é uma história de suspeitos, arbitrariedade, humilhação e abuso de poder, que podem acabar em tragédia. Não é ficção, é uma história real e recente. Essa história macabra é encoberta por corporativismo e xenofobia. É chocante.

O cidadão ucraniano Ihor Homeniuk desembarcou no Aeroporto Humberto Delgado, ou Aeroporto de Lisboa, no dia 10 de março deste ano, proveniente de Istambul. Foi barrado no controle de imigrantes e levado para ser entrevistado, onde o inspetor-chefe do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras decidiu negar a sua entrada em Portugal, por motivos que ainda não são conhecidos. Ihor deveria embarcar num voo previsto para a tarde do dia seguinte. Na noite do dia 10, foi levado para um Hospital em uma ambulância do Instituto Nacional de Emergências Médicas, acompanhado de inspetores do SEF e por uma intérprete, pois o ucraniano havia se queixado de dores nos membros inferiores e no abdómen. Depois de medicado, teve alta e retornou ao Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa.

Medicado e imobilizado

Também por motivos desconhecidos, Ihor não embarcou no voo da tarde do dia 11. Na mesma noite, foi separado dos demais estrangeiros que estavam detidos no CIT. Na madrugada, dois inspetores, um enfermeiro e uma assistente da Cruz Vermelha Portuguesa visitaram o ucraniano nas instalações. Ihor foi medicado por um enfermeiro sem habilitação médica para tal, que teria lhe dado Diazepam, para que ele ficasse mais calmo. Algum tempo depois, voltou a ficar agitado e foi imobilizado com fitas nos tornozelos.

Espancado e morto

Na manhã do dia 12, três inspetores do SEF foram até a sala onde Ihor estava. Estavam equipados com bastão extensível e algemas. Ao entrarem, ordenaram aos seguranças que não os identificassem, não colocando seus nomes na lista de controle. Na sala, algemaram o ucraniano, amarraram seus cotovelos, e iniciaram uma sessão de espancamento com chutes e bastonadas, enquanto gritavam para ele se calar.

Na tarde deste dia, outros inspetores foram até a sala para preparar Ihor Homeniuk para embarque para Istambul, mas perceberam que ele não reagia. Foram acionados os meios de emergência. Um membro das equipes atestou o óbito às 18h40min do dia 12 de março de 2020.

"Os pontapés e pancadas que provocaram a fratura dos arcos costais, potenciados pela imobilização do ofendido, com os braços manietados nas costas, em posição de decúbito ventral, causaram a violenta constrição do tórax, que promoveu a asfixia mecânica que foi causa direta da morte de Ihor Homeniuk", resultado preliminar da autópsia.

Ihor deixou mulher e dois filhos menores. Segundo a esposa, ele não estava vindo para Portugal trabalhar.

Vidas importam.

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